Carta ao Presidente Lula

Sobre o STF, a democracia, a justiça social e o garantismo

Nasci em uma família pobre. Filha de uma empregada doméstica e de um operário de fábrica, sindicalista, fundador da Central Única dos Trabalhadores e sobrinha-neta de um velho ferroviário, também sindicalista, que amargou o cárcere desde as primeiras horas do golpe de 1964 em razão do que pregava em um certo programa de rádio chamado “Ronda das Classes”. Fui criada em uma cidade chamada Viamão, primeira capital do Rio Grande do Sul, em uma “vila” (um lugar equivalente ao que em outros lugares do país é chamado de “periferia” ou de “favela”).

Desde muito cedo entendi que o único caminho para uma menina negra e pobre era a educação que meus pais sempre buscaram me garantir. Graças a ele e a ela, tornei-me advogada, professora, pesquisadora, uma intelectual com obras reconhecidas e citadas no Brasil e fora dele.

Aprendi a ler praticamente sozinha nas cartilhas do sindicato e panfletos políticos que o pai trazia para casa. E, desde cedo, escrever cartas tornou-se uma verdadeira fascinação. Quiçá tenham sido elas a me fazerem advogada. Afinal o que faz uma advogada senão escrever "cartas" com as quais se espera convencer alguém?

Enfim, me reencontrado com a "guria sabida" que meu avô dizia que eu era, neste 1º de Maio, dia das trabalhadoras e dos trabalhadores, decidi escrever aquela que, seguramente, é a mais importante carta de minha vida, pois vai endereçada ao primeiro operário eleito pelo povo brasileiro três vezes Presidente deste país chamado Brasil."

Bom dia, boa tarde ou boa noite,
Presidente Lula!

Quiséramos nós que, ao erguer os braços tendo nas mãos a Constituição, que adjetivou como Cidadã, além do gesto, também o discurso do Doutor Ulysses Guimarães, naquele 05 de outubro de 1988, tivesse sido o suficiente para que jamais, em tempo algum no futuro, nenhuma força, por mais violenta e embalada pelo ódio que seja, viesse novamente a ferir a democracia. Mas não.

Com tristeza, nossa história recente mostra que no Brasil, como em outras partes do mundo, o preço da democracia é o somatório da coragem à eterna vigilância. E, felizmente, para que um novo tempo fosse inaugurado, o povo e as instituições souberam fazer valer os versos de Gil e Caetano. “É preciso estar atento e forte”.

Temos, nós, brasileiras e brasileiros, “nojo à ditadura”. Por isso, mesmo em meio a mortes, a perseguições, a assédios, ao sucateamento das universidades, ao desmonte de políticas públicas de assistência, à pandemia, ao desprezo à ciência e à fome, mostramos que a resistência e a resiliência são valores entranhados em nossas fibras. Resistimos. E, no momento oportuno, como cidadãs e cidadãos, mostramos nas urnas que rechaçamos a barbárie.

De sua parte, como guardião de nossa Carta Fundamental, o Supremo cumpriu seu papel com a firmeza que se fez necessária. A sentinela esteve sempre a postos em defesa dos ideais democráticos e republicanos.

Não esmoreceu. Nem mesmo quando a própria vida e a segurança de seus Ministros e de suas Ministras estiveram sob ameaça. Ou quando os sinais golpistas deixaram o campo do discurso e se tornaram realidade nos atos de vandalismo que destruíram a estrutura física do Tribunal, em 08 de janeiro deste ano.

Altiva, a Presidenta da Corte, Ministra Rosa Weber, proclamou: “a democracia permanece inabalável”. O Supremo não se permitiu amedrontar.

O Mensalão e a criminalização da Política

Sem embargo, ainda que a proclamação de uma democracia inabalável tenha (e sempre terá) um importantíssimo lugar histórico, o conteúdo que ela carrega é somente uma das chaves de leitura para uma análise profunda e necessária sobre "quando", "onde" e "como" o projeto de corrosão do Estado Democrático de Direito teve início e em que estágio hoje se encontra.

Um diagnóstico que, entendo eu, exige remontar ao instante no qual a judicialização e, principalmente, a criminalização da política entrou em voga, de modo especial, por meio da espetacularizada Ação Penal 470, conhecida como Mensalão. Um tempo e lugar nos quais o garantismo passou a ser, midiática e indevidamente, convertido como sinônimo de “impunidade”.

De lá para cá, até chegarmos ao ápice do lawfare com a chamada operação lava jato, a destruição da política tornou-se objeto e objetivo de um macabro projeto de poder autoritário, dentro do qual o garantismo tornou-se um mero “capricho de professoras e professores de processo penal”, como declarou um certo ex-juiz, à época empossado no cargo de Ministro da Justiça.

O garantismo penal, enquanto imperativo de inafastabilidade devido processo legal, ou seja, dos direitos ao contraditório, à ampla defesa e, dentre outras garantias constitucionalmente previstas, a de ser julgado por um juiz competente, é, sem sombra de dúvidas, uma exigência constitucional. Fora dele o que temos são desejos nada republicanos e democráticos para cuja realização tudo é permitido, inclusive, perverter o jogo probatório e condenar inocentes.

O garantismo levado a sério

Muito ainda teremos de andar até que os pedregulhos autoritários do lavajatismo sejam retirados definitivamente do caminho.

Contudo, para além dos estragos advindos com o lavajatismo na seara criminal, também é chegada a hora de que o garantismo em sua total expressão passe a ser "levado a sério". O garantismo também é base de uma democracia substancial.

Inadequadamente transformado quase que em uma doutrina ou fórmula penal, o garantismo em sua amplitude parte do reconhecimento de que as lutas por direitos são o veículo necessário para a afirmação de necessidades vitais serem realizadas seja mediante a legislação, as ações do governo ou, dentro de sua competência, o exercício da jurisdição.

Democracia, garantismo e lutas sociais

Isto quer dizer que, se em uma face da moeda, ele aponta para o dever de que se reconheça na pessoa acusada e condenada sua condição de hipossuficiência perante o poder punitivo estatal. Na outra banda, ele afirma que a democracia é o ambiente legítimo no qual as trabalhadoras e os trabalhadores, os povos indígenas, as mulheres, a comunidade lgbti+, o povo negro, as pessoas sem-teto e sem-terra organizam-se para reivindicar trabalho digno, saúde, educação, moradia, terra e tantos outros direitos fundamentais previstos em nossa Carta.

Eis, portanto, a dimensão garantista que o Supremo Tribunal Federal também precisa incorporar, pois somente será inabalável uma democracia na qual a luta por direitos seja ela própria reconhecida como uma forma de exercício político legítimo em busca dos direitos sociais e econômicos anunciados no Texto de 1988.

Sem justiça social não há democracia

Sem justiça social não há democracia. Não basta ser garantista no campo penal enquanto se é liberal quando, por exemplo, em pauta estiverem questões relativas à dinâmica entre capital e trabalho da qual decorre (ou não!) a dignidade da pessoa humana de milhões de trabalhadoras e de trabalhadores.

Sob esse prisma, ser radicalmente democrata, ou seja, declarar-se verdadeira e amplamente garantista, é a primeira qualificação a ser submetida ao escrutínio público por alguém que ambiciona ser uma Ministra do Supremo Tribunal Federal.

De outro ângulo de mirada, também sabemos que, nos 132 anos de sua história, a nossa Corte Maior teve em seus quadros somente três mulheres Ministras. Nenhuma delas uma mulher negra, é fato. Mas, também, nenhuma delas vinda da advocacia. Todas até hoje vieram de carreiras de Estado. Duas magistradas e uma procuradora.

A advocacia e o compromisso com a democracia sustancial

"A cabeça pensa onde os pés pisam", nos ensinou Frei Betto. E o chão por onde marcha a defesa também é o que molda a perspectiva das advogadas que nunca fugiram à luta em defesa da democracia.

Durante os mais duros anos do arbítrio inaugurado com o Golpe de 1964, assim como nos tempos mais tenebrosos da escuridão democrática que se agudizou a partir de 2019, lá estiveram as advogadas para as quais é inarredável o compromisso com a defesa da Constituição, da ordem jurídica do Estado Democrático de Direito, dos direitos humanos e da justiça social.

Ao lado da ausência de paridade de gênero e da invisibilidade de raça, não é de menor importância, também sublinhar a carência de um lugar da advocacia popular – por seu viés – democrático em amplitude, pelas tantas razões que apontei acima.

Em defesa da independência e a laicidade do Supremo

Foi como advogada comprometida com os princípios maiores de justiça, igualdade e liberdade que, em 2021, diante da ameaça do então Presidente Jair Bolsonaro de indicar um “ministro terrivelmente evangélico”, aceitei colocar meu nome ao dispor da destemida e potente Campanha Por Um STF Independente e Laico. Um movimento de resistência que, em tempos de obscurantismo bolsonarista, foi subscrito por 135 movimentos, organizações e entidades notoriamente reconhecidas na luta por direitos, justiça social e democracia.

Tornei-me, então, uma "anticandidata", entendendo que aquela também era uma tarefa de resistência que me cabia. Mas, não como um contraponto simplório e errôneo entre um “terrivelmente evangélico” e uma “terrivelmente feminista”. Em absoluto.

Primeiro porque o feminismo, como práxis e teoria crítica que é, nos aponta para uma sociedade igualitária, livre e solidária, onde o projeto comum de homens e mulheres é a felicidade, o amor e o bem viver entre todas, todos e todes. O outro lado disso é o amálgama entre o ódio, o medo, a morte, o terror, o conjunto de discursos e ações com os quais não é possível sequer rivalizar pelo inaceitável que representa.

Segundo porque, filha que sou de uma família, por parte de pai evangélica, e, por parte de mãe, umbandista, sem que nunca tenha presenciado uma discussão sequer sobre religião, me considero como um fruto da tolerância religiosa que precisa imperar nesse país.

Com ambos os grupos de parentes, cristão e de religiosidade de matriz africana, aprendi o significado e o valor do caráter, da honra, do respeito ao outro e, principalmente, da fé. A laicidade é, portanto, um princípio constitucional que carrego desde o berço.

A universidade e o conhecimento comprometido com o povo brasileiro

Como intelectual, devo toda a minha formação à universidade pública onde fui estudante e me tornei professora e pesquisadora. Nos bancos do ensino público fiz graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado. Lá fui professora substituta, depois efetiva e também visitante. Nela, na universidade pública, ainda tenho meu lugar como pesquisadora.

Cada fração do meu conhecimento, portanto, devo ao povo brasileiro. Por isso, ainda que minhas obras sejam mencionadas em Tribunais Brasil afora ou em julgados do próprio STF e da Corte Interamericana de Direitos Humanos; e que tenham também ganhado reconhecimento internacional, é a serviço dele – do povo, que custeou minha formação – que saber está e sempre estará.

O notório saber jurídico e a suposta "mera pauta identitária"

A consciência que adquiri com a pobreza e a formação intelectual pública a que tive acesso, contudo, não seriam o suficiente se não estivessem em compasso ao reconhecimento da matriz ancestral que carrego também como mulher negra.

Tenho a mais absoluta convicção que minha negritude não se reduz ao que alguns etiquetam como “identitarismo”, na vã tentativa de silenciar o debate sobre a questão racial em nosso país. Representatividade importa, sim!

Por isso, quando aceitei colocar meu nome nesta empreitada de chegar ao Supremo em 2023, o fiz por que sei que, além de cumprir rigorosamente os requisitos exigidos pelo notório saber jurídico comprovado por meus títulos, livros, pesquisas, sou, enquanto indivíduo, nada mais que uma pequena peça em um projeto de reparação histórica a que todas nós fazemos jus como herdeiras de Esperança Garcia, mulher negra, escravizada, nordestina, autora do primeiro habeas corpus de que se tem notícia neste país e que, hoje, é reconhecida como a primeira advogada brasileira.

De outra banda, vislumbrar sentar-me na cadeira que se tornará vaga com a aposentadoria da Ministra Rosa Weber, em outubro de 2023, já seria uma honra, visto o pouquíssimo espaço das mulheres na Corte. Mas, não só, pois, por tudo o que disse antes, tenho como por mim firmado o compromisso de também honrar o lugar ocupado por alguém que, como ela, veio das fileiras comprometidas com a justiça social.

Muita pretensão? Não, e posso explicar.

Não sou candidata de mim mesma. Sou fruto de uma discussão coletiva realizada pelos mais diversos setores democráticos de nossa sociedade. Ou, quem sabe, um nome e um rosto para algo que é possível traduzir com as palavras de um indivíduo alcunhado como maluco e que certa vez nos disse que "um sonho que se sonha só é só um sonho que se sonha só, mas um sonho que se sonha junto é realidade".

Se “nossos passos vêm de longe”, afirmação na qual creio piamente, tornar-me Ministra do Supremo Tribunal Federal jamais será a realização de um projeto pessoal. Pelo contrário, será o ponto de chegada da luta travada pelas que vieram antes de mim.

Com as bençãos do Tempo, que se dê início a um novo ciclo histórico no qual as mulheres negras, as que vêm da pobreza, as democratas, as advogadas, as garantistas, as estudantes, as feministas, as professoras e pesquisadoras de universidades públicas com as quais me identifico possam continuar a esperançar de que é possível a construção de uma sociedade verdadeiramente sociedade livre, justa e solidária para todas, todes e todos.

Brasil, 1º. de maio de 2023.

(Dia das trabalhadoras e dos trabalhadores).

Soraia Mendes

Logo ícone conversar por whatsapp!